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DOM CASMURRO
POR
MACHADO DE ASSIS
DA ACADEMIA BRAZILEIRA
H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
RUA MOREIRA CEZAR, 71
RIO DE JANEIRO
6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
PARIZ
I
Do titulo.
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no
trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e
de chapéo. Comprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e
dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os
versos póde ser que não fossem inteiramente maus. Succedeu, porém, que
como eu estava cançado, fechei os olhos tres ou quatro vezes; tanto
bastou para que elle interrompesse a leitura e mettesse os versos no
bolso.
--Continue, disse eu accordando.
--Já acabei, murmurou elle.
--São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tiral-os outra vez do bolso, mas não passou
do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes
feios, e acabou alcunhando-me _Dom Casmurro._ Os visinhos, que não
gostam dos meus habitos reclusos e calados, deram curso á alcunha, que
afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anecdota aos amigos da
cidade, e elles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: «Dom
Casmurro, domingo vou jantar com você.»--«Vou para Petropolis, Dom
Casmurro; a casa é a mesma da Rhenania; vê se deixas essa caverna do
Engenho Novo, e vae lá passar uns quinze dias commigo.»--«Meu caro Dom
Casmurro, não cuide que o dispenso do theatro amanhã; venha e dormirá
aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe
dou moça.»
Não consultes diccionarios. _Casmurro_ não está aqui no sentido que
elles lhe dão, mas no que lhe poz o vulgo de homem calado e mettido
comsigo. _Dom_ veiu por ironia, para attribuir-me fumos de fidalgo.
Tudo por estar cochilando! Tambem não achei melhor titulo para a minha
narração; se não tiver outro d'aqui até ao fim do livro, vae este
mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor.
E com pequeno esforço, sendo o titulo seu, poderá cuidar que a obra
é sua. Ha livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem
tanto.
II.
Do livro.
Agora que expliquei o titulo, passo a escrever o livro. Antes disso,
porém, digamos os motivos que me põem a penna na mão.
Vivo só, com um creado. A casa em que moro é propria; fil-a
construir de proposito, levado de um desejo tão particular que me
vexa imprimil-o, mas vá lá. Um dia, ha bastantes annos, lembrou-me
reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de
Matacavallos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquella outra,
que desappareceu. Constructor e pintor entenderam bem as indicações
que lhes fiz: é o mesmo predio assobradado, tres janellas de frente,
varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a
pintura do tecto e das paredes é mais ou menos egual, umas grinaldas de
flores miudas e grandes passaros que as tomam nos bicos, de espaço a
espaço. Nos quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro
das paredes os medalhões de Cesar, Augusto, Nero e Massinissa, com os
nomes por baixo... Não alcanço a razão de taes personagens. Quando
fomos para a casa de Matacavallos, já ella estava assim decorada; vinha
do decennio anterior. Naturalmente era gosto do tempo metter sabor
classico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é tambem
analogo e parecido. Tenho chacarinha, flôres, legume, uma casuarina, um
poço e lavadouro. Uso louça velha e mobilia velha. Emfim, agora, como
outr'ora, ha aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com
a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na
velhice a adolescencia. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi
nem o que fui. Em tudo, se o rosto é egual, a physionomia é differente.
Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos
das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que
aqui está é, mal comparando, semelhante á pintura que se põe na barba e
nos cabellos, e que apenas conserva o habito externo, como se diz nas
autopsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte
annos de edade poderia enganar os extranhos, como todos os documentos
falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente;
todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto ás
amigas, algumas datam de quinze annos, outras de menos, e quasi todas
creem na mocidade. Duas ou tres fariam crer nella aos outros, mas a
lingua que falam obriga muita vez a consultar os diccionarios, e tal
frequencia é cançativa.
Entretanto, vida differente não quer dizer vida peor; é outra cousa.
A certos respeitos, aquella vida antiga apparece-me despida de muitos
encantos que lhe achei; mas é tambem exacto que perdeu muito espinho
que a fez molesta, e, de memoria, conservo alguma recordação doce e
feiticeira. Em verdade, pouco appareco e menos falo. Distracções raras.
O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo
mal.
Ora, como tudo cança, esta monotonia acabou por exhaurir-me tambem.
Quiz variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudencia,
philosophia e politica acudiram-me, mas não me acudiram as forças
necessarias. Depois, pensei em fazer uma _Historia dos Suburbios_,
menos secca que as memorias do padre Luiz Gonçalves dos Santos,
relativas á cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas,
como preliminares, tudo arido e longo. Foi então que os bustos pintados
nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que elles não
alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da penna e contasse
alguns. Talvez a narração me désse a illusão, e as sombras viessem
perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do _Fausto: Ahi
vindes outra vez, inquietas sombras...?_
Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a penna na
mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande Cesar, que me incitas
a fazer os meus commentarios, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao
papel as reminiscencias que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que
vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos
a evocação por uma celebre tarde de Novembro, que nunca me esqueceu.
Tive outras muitas, melhores, e peores, mas aquella nunca se me apagou
do espirito. É o que vás entender, lendo.
III
A denuncia.
Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e
escondi-me atraz da porta. A casa era a da rua de Matacavallos, o mez
Novembro, o anno é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as
datas á minha vida só para agradar ás pessoas que não amam historias
velhas; o anno era de 1857.
--D. Gloria, a senhora persiste na ideia de metter o nosso Bentinho no
seminario? É mais que tempo, e já agora póde haver uma difficuldade.
--Que difficuldade?
--Uma grande difficuldade.
Minha mãe quiz saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes
de concentrarão, veiu ver se havia alguem no corredor; não deu por mim,
voltou e, abafando a voz, disse que a difficuldade estava na casa ao
pé, a gente do Padua.
--A gente do Padua?
--Ha algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não
me parece bonito que o nosso Bentinho ande mettido nos cantos com a
filha do _Tartaruga_, e esta é a difficuldade, porque se elles pegam de
namoro, a senhora terá muito que lutar para separal-os.
--Não acho. Mettidos nos cantos?
--É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quasi
que não sae de lá. A pequena é uma desmiolada; o pae faz que não vê;
tomara elle que as cousas corressem de maneira, que... Comprehendo o
seu gesto; a senhora não crê em taes calculos, parece-lhe que todos têm
a alma candida...
--Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi
nada que faça desconfiar. Basta a edade; Bentinho mal tem quinze annos.
Capitú fez quatorze á semana passada; são dous creançolas. Não se
esqueça que foram criados juntos, desde aquella grande enchente, ha
dez annos, em que a familia Padua perdeu tanta cousa; d'ahi vieram as
nossas relações. Pois eu hei de crer...? Mano Cosme, você que acha?
Tio Cosme respondeu com um «Ora!» que, traduzido em vulgar, queria
dizer: «São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu
divirto-me; onde está o gamão?»
--Sim, creio que o senhor está enganado.
--Póde ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei
senão depois de muito examinar...
--Em todo caso, vae sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de
mettel-o no seminario quanto antes.
--Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o
principal. Bentinho ha de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois
a egreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo
presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o imperio...
--Governou como a cara d'elle! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos
rancores politicos.
--Perdão, doutor, não estou defendendo ninguem, estou citando. O que eu
quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.
--Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao
pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer
missa atraz das portas. Mas, olhe cá, mana Gloria, ha mesmo necessidade
de fazel-o padre?
--É promessa, ha de cumprir-se.
--Sei que você fez promessa... mas, uma promessa assim... não sei...
Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina?
--Eu?
--Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é
que sabe do todos. Comtudo, uma promessa de tantos annos... Mas, que
é isso, mana Gloria? Está chorando? Ora esta! Pois isto é cousa de
lagrimas?
Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou
e foi ter com ella. Seguiu-se um alto silencio, durante o qual estive
a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não
pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina
exhortava: «Prima Gloria! prima Gloria!» José Dias desculpava-se: «Se
soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo
affecto, para cumprir um dever amargo, um dever amarissimo...»
IV
Um dever amarissimo!
José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental
ás ideias; não as havendo, servir a prolongar as phrases. Levantou-se
para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito á
parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engommadas, presilhas,
rodaque e gravata de mola. Foi dos ultimos que usaram presilhas no Rio
de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe
ficassem bem esticadas. A gravata de setim preto, com um aro de aço
por dentro, immobilisava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de
chita, veste caseira o leve, parecia nelle uma casaca de cerimonia. Era
magro, chupado, com um principio de calva; teria os seus cincoenta e
cinco annos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquelle
vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um
syllogismo completo, a premissa antes da consequencia, a consequencia
antes da conclusão. Um dever amarissimo!
V
O aggregado.
Nem sempre ia naquelle passo vagaroso e rigido. Tambem se descompunha
em accionados, era muita vez rapido e lepido nos movimentos, tão
natural nesta como naquella maneira. Outrosim, ria largo, se era
preciso, de um grande riso sem vontade, mas communicativo, a tal ponto
as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, todo a pessoa, todo o
mundo pareciam rir nelle. Nos lances graves, gravissimo.
Era nosso aggregado desde muitos annos; meu pae ainda estava na
antiga fazenda de Itaguahy, e eu acabava de nascer. Um dia appareceu
alli vendendo-se por medico homeopatha; levava um _Manual_ e uma
botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor
e uma escrava, e não quiz receber nenhuma remuneração. Então meu
pae propoz-lhe ficar alli vivendo, com pequeno ordenado. José Dias
recusou, dizendo que era justo levar a saude á casa de sapé do pobre.
--Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quizer, mas fique
morando comnosco.
--Voltarei daqui a tres mezes.
Voltou dalli a duas semanas, acceitou casa e comida sem outro
estipendio, salvo o que quizessem dar por festas. Quando meu pae foi
eleito deputado e veiu para o Rio de Janeiro com a familia, elle veiu
tambem, e teve o seu quarto ao fundo da chacara. Um dia, reinando
outra vez febres em Itaguahy, disse-lhe meu pae que fosse ver a nossa
escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou
confessando que não era medico. Tomára este titulo para ajudar a
propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a
consciencia não lhe permittia acceitar mais doentes.
--Mas, você curou das outras vezes.
--Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remedios
indicados nos livros. Elles, sim, elles, abaixo de Deus. Eu era um
charlatão... Não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e
eram dignos; a homeopathia é a verdade, e, para servir á verdade,
menti; mas é tempo de restabelecer tudo.
Não foi despedido, como pedia então; meu pae já não podia dispensal-o.
Tinha o dom de se fazer acceito e necessario; dava-se por falta delle,
como de pessoa de familia. Quando meu pae morreu, a dôr que o pungiu
foi enorme, disseram-me, não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito
grata, e não consentiu que elle deixasse o quarto da chacara; ao setimo
dia, depois da missa, elle foi despedir-se della.
--Fique, José Dias.
--Obedeço, minha senhora.
Teve um pequeno legado no testamento, uma apolice e quatro palavras de
louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto,
por cima da cama. «Esta é a melhor apolice», dizia elle muita vez. Com
o tempo, adquiriu certa autoridade na familia, certa audiencia, ao
menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não
direi optimo, mas nem tudo é optimo neste mundo. E não lhe supponhas
alma subalterna; as cortezias que fizesse vinham antes do calculo
que da indole. A roupa durava-lhe muito; ao contrario das pessoas
que enxovalham depressa o vestido novo, elle trazia o velho escovado
e liso, cirzido, abotoado, de uma elegancia pobre e modesta. Era
lido, posto que de atropello, o bastante para divertir ao serão e á
sobremesa, ou explicar algum phenomeno, falar dos effeitos do calor e
do frio, dos polos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que
fizera á Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado
para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa familia, dizia elle,
abaixo de Deus, era tudo.
--Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.
--Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que elle punha Deus no
devido logar, e sorriu approvando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha
mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era
advogado, confiava-lhe a copia de papeis de autos.
VI
Tio Cosme.
Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ella enviuvou. Já então era
viuvo, como prima Justina; era a casa dos tres viuvos.
A fortuna troca muita vez as mãos á natureza. Formado para as serenas
funccões do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no fòro: ia comendo.
Tinha o escriptorio na antiga rua das Violas, perto do jury, que era no
extincto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas
oraes de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos
comprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais
modesto que quizesse ser, sorria de persuasão.
Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos.
Uma das minhas recordações mais antigas era vel-o montar todas as
manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escriptorio.
O preto que a tinha ido buscar á cocheira, segurava o freio, emquanto
elle erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de
descanço ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo
ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, egual effeito. Emfim,
após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças
physicas e moraes, dava o ultimo surto da terra, e desta vez caía em
cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que
acabava de receber o mundo. Tio Cosme accommodava as carnes, e a besta
partia a trote.
Tambem não me esqueceu o que elle me fez uma tarde. Posto que nascido
na roça (donde vim com dous annos) e apezar dos costumes do tempo,
eu não sabia montar, e tinha medo ao cavallo. Tio Cosme pegou em mim
e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove
annos), sósinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar
desesperadamente: «Mamãe! mamãe!» Ella acudiu pallida e tremula, cuidou
que me estivessem matando, apeou-me, affagou-me, emquanto o irmão
perguntava:
--Mana Gloria, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa?
--Não está acostumado.
--Deve acostumar-se. Padre que seja, se fôr vigario na roça, é preciso
que monte a cavallo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quizer
florear como os outros rapazes, e não souber, ha de queixar-se de você,
mana Gloria.
--Pois que se queixe; tenho medo.
--Medo! Ora, medo!
A verdade é que eu só vim a apprender equitação mais tarde, menos por
gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. «Agora é que
elle vae namorar devéras», disseram quando eu comecei as licções. Não
se diria o mesmo de tio Cosme. Nelle era velho costume e necessidade.
Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi acceito de muitas
damas, além de partidario exaltado; mas os annos levaram-lhe o mais
do ardor politico e sexual, e a gordura acabou com o resto de ideias
publicas e especificas. Agora só cumpria as obrigações do officio e
sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez
dizia pilherias.
VII
D. Gloria.
Minha mãe era boa creatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de
Albuquerque Santiago, contava trinta e um annos de edade, e podia
voltar para Itaguahy. Não quiz; preferiu ficar perto da egreja em que
meu pae fòra sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou
alguns que pôz ao ganho ou alugou, uma duzia de predios, certo numero
de apolices, e deixou-se estar na casa de Matacavallos, onde vivera
os dous ultimos annos de casada. Era filha de uma senhora mineira,
descendente de outra paulista, a familia Fernandes.
Ora, pois, naquelle anno da graça de 1857, D. Maria da Gloria Fernandes
Santiago contava quarenta e dous annos de edade. Era ainda bonita e
moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a
natureza quizesse preserval-a da acção do tempo. Vivia mettida em um
eterno vestido escuro, sem adornos, com um chale preto, dobrado em
triangulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabellos, em bandós,
eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez
trazia touca branca de fólhos. Lidava assim, com os seus sapatos de
cordavão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços
todos da casa inteira, desde manhã até á noite.
Tenho alli na parede o retrato della, ao lado do do marido, taes
quaes na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá ideia de
ambos. Não me lembra nada delle, a não ser vagamente que era alto e
usava cabelleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me
acompanham para todos os lados, effeito da pintura que me assombrava em
pequeno. O pescoço sae de uma gravata preta de muitas voltas, a cara
é toda rapada, salvo um trechosinho pegado ás orelhas. O de minha mãe
mostra que era linda. Contava então vinte annos, e tinha uma flôr entre
os dedos. No painel parece offerecer a flôr ao marido. O que se lè na
cara do ambos é que, se a felicidade conjugal póde ser comparada á
sorte grande, elles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.
Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as accusou
ainda de immoraes, como ninguem tachou de má a boceta de Pandora, por
lhe ter tirado a esperança no fundo; em alguma parte ha de ella ficar.
Aqui os tenho aos dous bem casados de outr'ora, os bem-amados, os
bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um
sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os
olhos para elles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatidica.
São retratos que valem por originaes. O de minha mãe, estendendo a flôr
ao marido, parece dizer: «Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!» O de meu
pae, olhando para a gente, faz este commentario: «Vejam como esta moça
me quer...» Se padeceram molestias, não sei, como não sei se tiveram
desgostos: era creança e comecei por não ser nascido. Depois da morte
delle, lembra-me que ella chorou muito; mas aqui estão os retratos de
ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão.
São como photographias instantaneas da felicidade.
VIII
É tempo!
Mas é tempo de tomar áquella tarde de Novembro, uma tarde clara e
fresca, socegada como a nossa casa e o trecho da rua em que moravamos.
Verdadeiramente foi o principio da minha vida; tudo o que succedera
antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em
scena, o accender das luzes, o preparo das rabecas, a symphonia...
Agora é que eu ia começar a minha opera. «A vida é uma opera,» dizia-me
um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia
a definição, em tal maneira que me fez crer nella. Talvez valha a pena
dal-a; é só um capitulo.
IX
A opera.
Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. «O desuso é que
me faz mal», accrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da
Europa, ia ao empresario e expunha-lhe todas as injustiças da terra e
do ceu; o empresario commettia mais uma, e elle saía a bradar contra
a iniquidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papeis. Quando andava,
apezar de velho, parecia cortejar uma princeza de Babylonia. Ás vezes,
cantarolava, sem abrir a bocca, algum trecho ainda mais edoso que elle
ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possiveis. Vinha aqui jantar
commigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me
a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia
sor uma opera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e
replicou:
--A vida é uma opera e uma grande opera. O tenor e o barytono lutam
pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimarios, quando não são o
soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo
e dos mesmos comprimarios. Ha córos numerosos, muitos bailados, e a
orchestração é excellente...
--Mas, meu caro Marcolini...
--Quê...?
E, depois de beber um gole de licor, pousou o calix, e expoz-me a
historia da creação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A musica é de Satanaz, joven maestro de muito futuro,
que apprendeu no conservatorio do ceu. Rival de Miguel, Raphael e
Gabriel, não tolerava a precedencia que elles tinham na distribuição
dos premios. Póde ser tambem que a musica em demasia doce e mystica
daquelles outros condiscipulos fosse aborrecivel ao seu genio
essencialmente tragico. Tramou uma rebellião que foi descoberta a
tempo, e elle expulso do conservatorio. Tudo se teria passado sem mais
nada, se Deus não houvesse escripto um libretto de opera, do qual
abrira mão, por entender que tal genero de recreio era improprio da
sua eternidade. Satanaz levou o manuscripto comsigo para o inferno.
Com o fim de mostrar que valia mais que os outros,--e acaso para
reconciliar-se com o ceu--compoz a partitura, e logo que a acabou foi
leval-a ao Padre Eterno.
--Senhor, não desapprendi as licções recebidas, disse-lhe. Aqui tendes
a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes
digna das alturas, admitti-me com ella a vossos pés...
--Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
--Mas, Senhor...
--Nada! nada!
Satanaz supplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cançado e
cheio de misericordia, consentiu em que a opera fosse executada, mas
fóra do ceu. Creou um theatro especial, este planeta, e inventou uma
companhia inteira, com todas as partes, primarias e comprimarias, córos
e bailarinos.
--Ouvi agora alguns ensaios!
--Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libretto;
estou prompto a dividir comtigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; della resultaram alguns desconcertos
que a audiencia prévia e a collaboração amiga teriam evitado. Com
effeito, ha logares em que o verso vae para a direita e a musica para
a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a belleza da
composição, fugindo á monotonia, e assim explicam o tercetto do Eden,
a aria de Abel, os córos da guilhotina e da escravidão. Não é raro que
os mesmos lances se reproduzam, sem razao sufficiente. Certos motivos
cançam á força de repetição. Tambem ha obscuridades; o maestro abusa
das massas choraes, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso.
As partes orchestraes são aliás tratadas com grande pericia. Tal é a
opinião dos imparciaes.
Os amigos do maestro querem que difficilmente se possa achar obra
tão bem acabada. Um ou outro admitte certas rudezas e taes ou
quaes lacunas, mas com o andar da opera é provavel que estas sejam
preenchidas ou explicadas, e aquellas desapparecam inteiramente, não se
negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo
ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste.
Juram que o libretto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o
sentido da lettra, e, posto seja bonita em alguns logares, e trabalhada
com arte em outros, é absolutamente diversa e até contraria ao drama. O
grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescencia
para imitar as _Mulheres patuscas de Windsor._ Este ponto é contestado
pelos satanistas com alguma apparencia de razão. Dizem elles que, ao
tempo em que o joven Satanaz compoz a grande opera, nem essa farça nem
Shakespeare eram nascidos. Chegam a affirmar que o poeta inglez não
teve outro genio senão transcrever a lettra da opera, com tal arte
e fidelidade, que parece elle proprio o autor da composição; mas,
evidentemente, é um plagiario.
--Esta peça, concluiu o velho tenor, durará emquanto durar o theatro,
não se podendo calcular em que tempo será elle demolido por utilidade
astronomica. O exito é crescente. Poeta e musico recebem pontualmente
os seus direitos autoraes, que não são os mesmos, porque a regra da
divisão é aquillo da Escriptura: «Muitos são os chamados, poucos os
escolhidos.» Deus recebe em ouro, Satanaz em papel.
--Tem graça...
--Graça? bradou elle com furia; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro
Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror á graça. Isto que digo é
a verdade pura e ultima. Um dia, quando todos os livros forem queimados
por inuteis, ha de haver alguem, póde ser que tenor, e talvez italiano,
que ensine esta verdade aos homens. Tudo é musica, meu amigo. No
principio era o _dó_, e o _dó_ fez-se _ré_, etc. Este calix (e enchia-o
novamente) este calix é um breve estribilho. Não se ouve? Tambem não se
ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma opera...
X
Acceito a theoria.
Que é demasiada metaphysica para um só tenor, não ha duvida; mas a
perda da voz explica tudo, e ha philosophos que são, em resumo, tenores
desempregados.
Eu, leitor amigo, acceito a theoria do meu velho Marcolini, não só pela
verosimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida
se casa bem á definição. Cantei um _duo_ ternissimo, depois um _trio_,
depois um _quatuor..._ Mas não adeantemos; vamos á primeira tarde, em
que eu vim a saber que já cantava, porque a denuncia de José Dias,
meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que elle me
denunciou.
XI
A promessa.
Tão depressa vi desapparecer o aggregado no corredor, deixei o
esconderijo, e corri á varanda do fundo. Não quiz saber de lagrimas nem
da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os
seus projectos ecclesiasticos, e a occasião destes é a que vou dizer,
por ser já então historia velha; datava de dezeseis annos.
Os projectos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido
morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo
vingasse, promettendo, se fosse varão, mettel-o na egreja. Talvez
esperasse uma menina. Não disse nada a meu pae, nem antes, nem depois
de me dar á luz; contava fazel-o quando eu entrasse para a escola,
mas enviuvou antes disso. Viuva, sentiu terror de separar-se de mim;
mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da
obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente,
para que nos separassemos o mais tarde possivel, fez-me apprender em
casa primeiras lettras, latim e doutrina, por aquelle padre Cabral,
velho amigo do tio Cosme, que ia lá jogar ás noites.
Prazos largos são faceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos.
Minha mãe esperou que os annos viessem vindo. Entretanto, ia-me
affeiçoando á ideia da egreja; brincos de creança, livros devotos,
imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar.
Quando iamos á missa, dizia-me sempre que era para apprender a ser
padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em
casa, brincava de missa,--um tanto ás escondidas, porque minha mãe
dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjavamos um altar,
Capitú e eu. Ella servia de sacristão, e alteravamos o ritual, no
sentido do dividirmos a hostia entre nós; a hostia era sempre um
doce. No tempo em que brincavamos assim, era muito commum ouvir á
minha visinha: «Hoje ha missa?» Eu já sabia o que isto queria dizer,
respondia affirmativamente, e ia pedir hostia por outro nome. Voltava
com ella, arranjavamos o altar, engrolavamos o latim e precipitavamos
as cerimonias. _Dominus, non sum dignus..._ Isto, que eu devia dizer
tres vezes, penso que só dizia uma, tal era a golodice do padre e do
sacristão. Não bebiamos vinho nem agua; não tinhamos o primeiro, e a
segunda viria tirar-nos o gosto do sacrificio.
Ultimamente não me falavam já do seminario, a tal ponto que eu suppunha
ser negocio findo. Quinze annos, não havendo vocação, pediam antes o
seminario do mundo que o de S. José. Minha mãe ficava muita vez a olhar
para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada,
para apertal-a muito.
XII
Na varanda.
Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração
parecendo querer sair-me pela bocca fóra. Não me atrevia a descer á
chacara, e passar ao quintal visinho. Comecei a andar de um lado para
outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes
confusas repetiam o discurso do José Dias:
«Sempre juntos...»
«Em segredinhos...»
«Se elles pegam de namoro...»
Tijolos que pisei e repisei naquella tarde, columnas amarelladas que
me passastes á direita ou á esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós
me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um goso novo, que me
envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e
me derramava não sei que balsamo interior. Ás vezes dava por mim,
sorrindo, um ar do riso de satisfação, que desmentia a abominação do
meu peccado. E as vozes repetiam-se confusas:
«Em segredinhos...»
«Sempre juntos...»
«Se elles pegam de namoro...»
Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de
cima de si que não era feio que os meninos de quinze annos andassem
nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrario, os adolescentes
daquella edade não tinham outro officio, nem os cantos outra utilidade.
Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que
nos velhos livros. Passaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o
estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião.
Com que então eu amava Capitú, e Capitú a mim? Realmente, andava cosido
ás saias della, mas não me occorria nada entre nós que fosse devéras
secreto. Antes della ir para o collegio, eram tudo travessuras de
creanca; depois que saiu do collegio, é certo que não restabelecemos
logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no ultimo
anno era completa. Entretanto, a materia das nossas conversações era
a de sempre. Capitú chamava-me ás vezes bonito, mocetão, uma flòr;
outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar
esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ella
me passava a mão pelos cabellos, dizendo que os achava lindissimos.
Eu, sem fazer o mesmo aos della, dizia que os della eram muito mais
lindos que os meus. Então Capitú abanava a cabeça com uma grande
expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que
tinha os cabellos realmente admiraveis; mas eu retorquia chamando-lhe
maluca. Quando me perguntava se sonhára com ella na vespera, e eu
dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhára commigo, e eram aventuras
extraordinarias, que subiamos ao Corcovado pelo ar, que dansavamos na
lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, afim de
os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos
andavamos unidinhos. Os que eu tinha com ella não eram assim, apenas
reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da simples
repetição do dia, alguma phrase, algum gesto. Tambem eu os contava.
Capitú um dia notou a differença, dizendo que os della eram mais
bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram
como a pessoa que sonhava... Fez-se còr de pitanga.
Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam essas e
outras confidencias. A emoção era doce e nova, mas a causa della
fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silencios dos
ultimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como signaes
de alguma cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as
respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infancia. Tambem
adverti que era phenomeno recente accordar com o pensamento em Capitú,
e escutal-a de memoria, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se
se falava nella, em minha casa, prestava mais altenção que d'antes,
e, segundo era louvor ou critica, assim me trazia gosto ou desgosto
mais intensos que outr'ora, quando eramos sómente companheiros de
travessuras. Cheguei a pensar nella durante as missas daquelle mez, com
intervallos, é verdade, mas com exclusivismo tambem.
Tudo isto me era agora apresentado pela bocca de José Dias, que me
denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera,
o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e do outro. Naquelle
instante, a eterna Verdade não valeria mais que elle, nem a eterna
Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Em amava Capitú! Capitú
amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, tremulas
e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa
revelação da consciencia a si propria, nunca mais me esqueceu, nem
achei que lhe fosse comparavel qualquer outra sensação da mesma
especie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente tambem por ser a
primeira.
XIII
Capitú.
De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:
--Capitú!
E no quintal:
--Mamãe!
E outra vez na casa:
--Vem cá!
Não me pude ter. As pernas desceram-me os tres degraus que davam para
a chacara, e caminharam para o quintal visinho. Era costume dellas, ás
tardes, e ás manhãs tambem. Que as pernas tambem são pessoas, apenas
interiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça não as
rege por meio de ideias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia alli
uma porta de communicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitú
e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela, abria-se
empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de
uma pedra pendente de uma corda. Era quasi que exclusivamente nossa.
Em creancas, faziamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos
do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitú adoeciam,
o medico era eu. Entrava no quintal della com um pau debaixo do
braço, para imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso
á doente, e pedia-lhe que mostrasse a lingua. «É surda, coitada!»
exclamava Capitú. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava
mandando applicar-lhe umas sanguesugas ou dar-lhe um vomitorio: era a
therapeutica habitual do medico.
--Capitú!
--Mamãe!
--Deixa de estar esburacando o muro; vem cá.
A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos
fundos. Quiz passar ao quintal, mas as pernas, ha pouco tão andarilhas,
pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta,
e entrei. Capitú estava ao pé do muro fronteiro, voltada para elle,
riscando com um prego. O rumor da porta fel-a olhar para traz; ao dar
commigo, encostou-se ao muro, como se quizesse esconder alguma cousa.
Caminhei para ella; naturalmente levava o gesto mudado, porque ella
veiu a mim, e perguntou-me inquieta:
--Que é que você tem?
--Eu? Nada.
--Nada, não; você tem alguma cousa.
Quiz insistir que nada, mas não achei lingua. Todo eu era olhos e
coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela bocca
fora. Não podia tirar os olhos daquella creatura de quatorze annos,
alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado.
Os cabellos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma á
outra, á moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros
e grandes, nariz recto e comprido, tinha a bocca fina e o queixo largo.
As mãos, a despeito de alguns officios rudes, eram curadas com amor;
não cheiravam a sabões finos nem aguas de toucador, mas com agua do
poço e sabão commum trazia-as sem macula. Calçava sapatos de duraque,
rasos e velhos, a que ella mesma dera alguns pontos.
--Que é que você tem? repetiu.
--Não é nada, balbuciei finalmente.
E emendei logo:
--É uma noticia.
--Noticia de què?
Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminario e espreitar a
impressão que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de
mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse calculo foi obscuro e
rapido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista não
sei como...
--Então?
--Você sabe...
Nisto olhei para o muro, o logar em que ella estivera riscando,
escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e
lembrou-me o gesto que ella fizera para cobril-os. Então quiz vel-os
de perto, e dei um passo. Capitú agarrou-me, mas, ou por temer que
eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adeante e
apagou o escripto. Foi o mesmo que accender em mim o desejo de ler o
que era.
XIV
A inscripção.
Tudo o que contei no fim do outro capitulo foi obra de um instante.
O que se lhe seguiu foi ainda mais rapido. Dei um pulo, e antes que
ella raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, o assim
dispostos:
BENTO CAPITOLINA
Voltei-me para ella; Capitú tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo,
devagar, e ficámos a olhar um para o outro... Confissão de creanças,
tu valias bem duas ou tres paginas, mas quero ser poupado. Em verdade,
não falámos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que
se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se,
fundindo-se. Não marquei a hora exacta daquelle gesto. Devia tel-a
marcado; sinto a falta de uma nota escripta naquella mesma noite, e
que eu poria aqui com os erros de orthographia que trouxesse, mas não
traria nenhum, tal era a differença entre o estudante e o adolescente.
Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias
de latim e era virgem de mulheres.
Não soltámos as mãos, nem ellas se deixaram cair de cançadas ou de
esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao
perto, tornavam a metter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava
assim deante della como de um altar, sendo uma das faces a Epistola e
a outra o Evangelho. A bocca podia ser o calix, os labios a patena.
Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguem apprende, e é a
lingua catholica dos homens. Não me tenhas por sacrilego, leitora minha
devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no
estylo. Estavamos alli com o ceu em nós. As mãos, unindo os nervos,
faziam das duas creaturas uma só, mas uma só creatura seraphica. Os
olhos continuaram a dizer cousas infinitas, as palavras de bocca é que
nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham...
XV
Outra voz repentina.
Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem:
--Vocês estão jogando o siso?
Era o pae de Capitú, que estava á porta dos fundos, ao pé da mulher.
Soltámos as mãos depressa, e ficámos atrapalhados. Capitú foi ao muro,
e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes escriptos.
--Capitú!
--Papae!
--Não me estragues o reboco do muro.
Capitú riscava sobre o riscado, para apagar bem o escripto. Padua saiu
ao quintal, a ver o que era, mas já a filha tinha começado outra cousa,
um perfil, que disse ser o retrato delle, e tanto podia ser delle como
da mãe; fel-o rir, era o essencial. De resto, elle chegou sem colera,
todo meigo, apezar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que nos
apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas
abahuladas, donde lhe veiu a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe
poz. Ninguem lhe chamava assim lá em casa; era só o aggregado.
--Vocês estavam jogando o siso? perguntou,
Olhei para um pé do sabugueiro que ficava perto; Capitú respondeu por
ambos.
--Estavamos, sim, senhor, mas Bentinho ri logo, não aguenta.
--Quando eu cheguei á porta, não ria.
--Já tinha rido das outras vezes; não póde. Papae quer ver?
E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é
naturalmente serio; eu estava ainda sob a acção do que trouxe a entrada
de Padua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazel-o, para
legitimar a resposta de Capitú. Esta, cançada de esperar, desviou
o rosto, dizendo que eu não ria daquella vez por estar ao pé do
pae. E nem assim ri. Ha cousas que só se apprendem tarde; é mister
nascer com ellas para fazel-as cedo. E melhor é naturalmente cedo que
artificialmente tarde. Capitú, após duas voltas, foi ter com a mãe,
que continuava á porta da casa, deixando-nos a mim e ao pae encantados
della; o pae, olhando para ella e para mim, dizia-me, cheio de ternura:
--Quem dirá que esta pequena tem quatorze annos? Parece dezesete. Mamãe
está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim.
--Está.
--Ha muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote
ao doutor, mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição, em
casa; escrevo todos os noites que é em desespero; negocio de relatorio.
Você já viu o meu gaturamo? Está alli no fundo. Ia agora mesmo buscar a
gaiola; ande ver.
Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar
pelo ceu nem pela terra. Meu desejo era ir atraz de Capitú e falar-lhe
agora do mal que nos esperava, mas o pae era o pae, e demais amava
particularmente os passarinhos. Tinha-os de varia especie, côr e
tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de
canarios, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava
passaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no proprio
quintal, armando alçapões. Tambem, se adoeciam, tratava delles como se
fossem gente.
XVI
O administrador interino.
Padua era empregado em repartição dependente do ministerio da guerra.
Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata.
Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que
menor, era propriedade delle. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu
n'um meio bilhete de loteria, dez contos de reis. A primeira ideia do
Padua, quando lhe saiu o premio, foi comprar um cavallo do Cabo, um
adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpetua de familia,
mandar vir da Europa alguns passaros, etc.; mas a mulher, esta D.
Fortunata que alli está á porta dos fundos da casa, em pé, falando á
filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos
olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa,
e guardar o que sobrasse para acudir ás molestias grandes. Padua
hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem
D. Fortunata pediu auxilio. Nem foi só nessa occasião que minha mãe
lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Padua. Escutai; a anecdota
é curta.
O administrador da repartição em que Padua trabalhava teve de ir ao
Norte, em commissão. Padua, ou por ordem regulamentar, ou por especial
designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos
honorarios. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem: era
antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa,
atirou-se ás despezas superfluas, deu joias á mulher, nos dias de
festa matava um leitão, era visto em theatros, chegou aos sapatos de
verniz. Viveu assim vinte e dous mezes na supposição de uma eterna
interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, afflicto e desvairado,
ia perder o logar, porque chegara o effectivo naquella manhã. Pediu a
minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia soffrer
a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas elle não
attendia a cousa nenhuma.